A trajetória humana é permeada por eventos inevitáveis que, sem prévio aviso, põe-nos numa condição de vulnerabilidade. Como já dizia o célebre Machado de Assis: “o destino, como os dramaturgos, não anuncia as peripécias nem o desfecho.”.
Muitos são exemplos de cidadãos comuns surpreendidos por enfermidades complexas, as quais demandam, para fins de controle ou tratamento, a utilização de medicamentos de elevado valor.
Se, por um lado, como todo e qualquer bem de consumo, os insumos necessários ao tratamento do paciente envolvem custo, não se pode esquecer que a saúde é um direito humano, dotado de proteção constitucional.
Vê-se, pela leitura do art. 196 da Constituição Federal, deter o Estado Brasileiro o dever de garantir ao cidadão possibilidade de “acesso universal e igualitário” às ações e serviços voltados à “promoção, proteção e recuperação” da saúde, incluindo-se aí a assistência farmacêutica.
Para viabilizar a materialização deste importante direito fundamental, é que foi criada, ainda no ano de 1993, a Política Nacional de Medicamentos. Tal política, dentre outras medidas, trouxe a criação da chamada RENAME – Relação Nacional de Medicamentos Essenciais – a qual contém uma listagem de medicamentos que, obrigatoriamente, devem ser disponibilizados pelo SUS, além das regras para o seu custeio, aquisição e distribuição.
Quando o medicamento, além de custoso, não estiver incluso na listagem do RENAME, faz-se necessária a adoção de medidas voltadas à obtenção de tutela jurisdicional, com o fito de obrigar o ente público – Estado, Município ou União, individual ou solidariamente – a fornecer o fármaco.
A possibilidade jurídica de obrigar o Estado Brasileiro a fornecer a seus cidadãos medicamentos de alto custo ainda é controvertida. Está, inclusive, em tramitação perante o Supremo Tribunal Federal o Recurso Extraordinário de n.º 566.571/RN, sob a relatoria do Ministro Marco Aurélio, no âmbito da qual se discutirá, de forma definitiva, se os entes federativos estão obrigados ao fornecimento de medicamentos de alto custo quando não inclusos na RENAME.
Enquanto a análise da constitucionalidade da obrigação não é decidida pelo STF, os casos desta natureza têm sido resolvidos à luz das diretrizes firmadas pelo Superior Tribunal de Justiça, quando do julgamento do Recurso Especial de n.º 1657156 / RJ, de relatoria do Ministro Benedito Gonçalves.
Após avaliar todo o quadro jurídico que permeia esta relevantíssima questão, o STJ concluiu que há possibilidade jurídica de o cidadão exigir do ente público o fornecimento de medicamentos de alto custo, mesmo que não constem da RENAME, desde que satisfeitos alguns requisitos.
O primeiro requisito a ser demonstrado é a comprovação, por meio de laudo médico, da efetiva necessidade do medicamento para tratamento da patologia. Não basta, pois, o mero desejo do paciente em utilizar um ou outro medicamento, sendo indispensável para o êxito da demanda a comprovação clínica de sua imprescindibilidade.
É também necessário informar a impossibilidade clínica de substituição do fármaco por outro albergado pela RENAME. Com tal medida, intenta a Corte estimular o emprego racional dos recursos públicos, ao optar pela solução menos onerosa ao erário e que, ao mesmo, viabilize a recuperação da saúde do cidadão enfermo.
O segundo requisito listado pelo STJ diz respeito à comprovação da hipossuficiência do requerente. Por hipossuficiência, in casu, entende-se a carência financeira o torna incapaz de arcar com os custos inerentes a seu tratamento médico.
Tal incapacidade, no entanto, não se confunde com o estado de pobreza. Ainda que o núcleo familiar do paciente disponha de recursos financeiros suficientes à garantia de um padrão de vida confortável, se o custo do fármaco mostrar-se elevado a ponto de comprometer em demasia o orçamento familiar, haverá possibilidade de concessão da medida em seu favor.
Por fim, orienta o STJ que a aquisição do fármaco depende também de que este disponha de registro e aprovação pela ANVISA. Desta feita, medicamentos importados ainda não submetidos à análise das autoridades locais ou medicamentos experimentais, de eficácia não comprovada segundo os parâmetros normativos em vigor, são impassíveis de custeio público.
Acumulados os requisitos listados acima, inexistem óbices ao manejo de ação judicial para fins de condenação do Estado ao pagamento de medicamento de alto custo.
Importante frisar que o manejo de ações individuais, por si só, não basta à garantia de materialização efetiva do direito constitucional à saúde.
A fiscalização dos agentes públicos para que promovam periodicamente a atualização da RENAME, além do controle da aquisição e distribuição justa e equitativa dos citados medicamentos são medidas que podem, a longo prazo, contribuir para o aperfeiçoamento constante do sistema, minorando o sofrimento dos milhares de vulneráveis que ainda aguardam tortuosamente por tratamento adequado às suas patologias.
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